quarta-feira, 25 de junho de 2008

Pipoca, chocolate e encantamento


Lá estava eu em mais uma noite de bate-papo num bar qualquer... À mesa, estavam não só amigos, mas também uns amigos dos amigos. Entre um assunto e outro, uma pessoa começou a falar que ia ao cinema apenas para comer a pipoca: “Compro aquele saco bem grande de pipoca, cheio de manteiga e vou pra sala de projeção... Já que tenho direito a um refil, saio no meio do filme e peço pra que encham de novo. Quando acabo de comer o refil, vou embora. Pouco me interessa o filme! O que eu quero é comer aquela pipoca deliciosa, uma por uma, bem cheia de manteiga. Delícia!” (É claro que não foram poucas as críticas quanto à atitude do rapaz.) Foi então que me lembrei do poema ‘Tabacaria’ de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Álvaro de Campos, no qual o poeta vê a menina que come chocolate do outro lado da rua. Transcrevo o trecho aqui:
...
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

...
Nesse momento, a menina realiza uma experiência estético-degustativa e nem se dá conta disso, assim como o rapaz que come apenas a pipoca, diferente de qualquer pessoa que come para se alimentar. Os dois curtem o prazer inerente à experiência estética somente possível para aqueles que se permitem ter os sentidos aguçados e entregues às mais completas sensações possíveis para o ser humano. É como simplesmente olhar um jardim ou um quadro, não para procurar respostas, mas apenas para contemplar e depreender tudo o que é sensível. Penso que hoje o sistema pouco permite ao ser humano o ócio necessário para o aguçamento dos sentidos para que se perceba melhor os sons, os tons, as texturas, os gostos, os cheiros. A meditação, que consiste em fazer o mundo parar, não acha espaço na vida corrida que insistem em nos empurrar. Somente paramos pra dormir. E, às vezes, nem pra isso. E por que acredito na necessidade do prazer estético? Porque as pessoas precisam de encantamento, a sensação advinda da experiência conjunta da razão e da sensibilidade. O encantamento permite ao ser humano a sensação única de existir no mundo, de se integrar aos seus fenômenos e ser capaz de julgar valores reais, e não simplesmente se transformar num objeto de consumo, desencantado pelo condicionamento de massa. Mario de Andrade já disse: "Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos." Há muito mais por aí do que nos é apresentado... Encantem-se e descubram.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

...não há fusão.

Estética da Criação Verbal - Mikhail Bakhtin: Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre serei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar, – a cabeça, o rosto, a expressão do rosto - o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos. Graças a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença dos horizontes, mas para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Embriaguez

Descobri algumas atividades essenciais aqui pelo cerrado... A primeira delas, como já disse na apresentação deste blog, é escrever. E para escrever, tenho lido mais do que estava acostumada a fazer, incluindo nas leituras incessantes muita poesia. Aliás, me descobri seguidora de uma nova religião, a religião da poesia! É no poder da poesia que acredito; é a poesia que pratico; é nela que quero viver e deixar viver.
Uma segunda atividade, que se tornou extremamente freqüente, é beber, beber bebidas alcoólicas, beber até me perder, não ter mais sentidos, sentir que tudo flui, que exalo o meu eu, que me perco nos limites do meu corpo, me perco até adormecer...
Já falei demais por hoje... Deixo aqui um poema sábio de Baudelaire. É mais que um poema; é a tradução do meu novo estilo de vida. E se conselho fosse bom...


Enivrez-Vous
(Clarles Baudelaire)
Il faut être toujours ivre.
Tout est là:
c'est l'unique question.
Pour ne pas sentir
l'horrible fardeau du Temps
qui brise vos épaules
et vous penche vers la terre,
il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi?
De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise.
Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois,
sur les marches d'un palais,
sur l'herbe verte d'un fossé,
dans la solitude morne de votre chambre,
vous vous réveillez,
l'ivresse déjà diminuée ou disparue,
demandez au vent,
à la vague,
à l'étoile,
à l'oiseau,
à l'horloge,
à tout ce qui fuit,
à tout ce qui gémit,
à tout ce qui roule,
à tout ce qui chante,
à tout ce qui parle,
demandez quelle heure il est;
et le vent,
la vague,
l'étoile,
l'oiseau,
l'horloge,
vous répondront:
"Il est l'heure de s'enivrer!
Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps,
enivrez-vous;
enivrez-vous sans cesse!
De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.

Embriague-se
É preciso estar sempre embriagado.
Aí está:
eis a única questão.
Para não sentir
o horrível fardo do Tempo
que pesa os seus ombros
e o inclina em direção à Terra,
é preciso que se embriague sem cessar.
Mas com quê?
Com vinho, com poesia, ou com virtude, à sua escolha.
Mas se embriague.
E se porventura,
nos degraus de um palácio,
na relva verde de um fosso,
na morna solidão de seu quarto,
você acordar,
a embriaguez já tiver diminuído ou desaparecido,
pergunte ao vento,
à onda,
à estrela,
ao pássaro,
ao relógio,
a tudo que flui,
a tudo que geme,
a tudo que gira,
a tudo que canta,
a tudo que fala,
pergunte que horas são;
o vento,
a onda,
a estrela,
o pássaro,
o relógio,
responderão:
“É hora de se embriagar!
Para não ser escravo martirizado do Tempo,
Embriague-se;
Embriague-se sem cessar!
Com vinho, com poesia ou virtude, à sua escolha.”